Cada tecla que pressionas fazer o piano gemer, nota a nota.
Não consegues evitá-lo, por mais que tentes, nunca conseguirias não fazer amor com cada tecla branca marfim, não conseguirias não tocar-lhes como me tocas a mim, dentro de lençóis de seda chinesa, após teres arrancado do meu corpo a renda que o cobria, como me tocas quando te lembras que nesta casa também eu existo.
Por vezes, devo dizer, sinto-me como ele, esse piano de cauda, com aquele fino cobertor de pó que o mantém tão inalteravelmente misterioso, que lhe dá aquele encanto que te mantêm cativo, não consigo evitar não me sentir como ele, esse piano que se encontra virado para a janela, na sala, na tua sala, esse piano que só abandonas para te deitares na cama comigo...
A meio da noite, quando acordo ao som de uma sinfonia de Chopin, sozinha na cama, porque as tuas insónias, ou porque essa tua paixão, não te deixam dormir, e te espreito a tocar, a luz da lua incide em ti e nele, fazendo-vos brilhar, quem visse o que vejo todas as noites viria claramente que foram feitos um para o outro, sentiria o piano a gemer de prazer, como eu gemo, quando lhe tocas, viria o êxtase que sentes quando atinges o clímax de cada melodia, viria que dentro de ti não existe espaço para mais ninguém senão para ele.
Desta vez tocas a minha melodia preferida, apesar de o desconheceres, tocas com tanto amor, tanta tristeza, tanto transtorno e melancolia que as lágrimas começam a cair, uma a uma, em cima da roupa que a empregada passou ainda hoje, em cima da roupa que estou a colocar dentro da mala de viagem que nunca utilizei, não consegues sequer imaginar que aquilo que estás a tocar está de facto a acontecer, não dentro desse teu coração de poeta que finge sentimentos (esse coraçao de poeta pelo qual me apaixonei), mas sim dentro de mim, uma mulher incapaz de fingir a desilusão constante em que vive. Faço as malas e oiço-te a tocar, sabendo que esta é a última vez que me vou deixar ouvir-te, apesar de saber que a tua melodia embeleza a pequena cidade onde escolheste nascer, começo a sair e sei que não me ouves, e sei também que só darás por minha falta quando me fores procurar no meio dos lençóis de seda e não encontrares mais renda para deliciosamente rasgares, sem qualquer pudor, apenas para satisfazer esse teu desejo de calor que te assoma quando fazes amor com ele, porque ele nunca poderá ser como eu, ele só te dará orgasmos mentais, ele só consegue ser aquilo que é, um piano frio, sem sentimentos, sem calor, sem nada que possa dar prazer a esse teu corpo humano, eu, eu satisfazia-te tudo o resto, eu libertava-te dessa ânsia que nunca soubeste controlar, porque sempre te deram tudo o que querias automaticamente, esse desejo carnal era eu que to tirava, porque ele era incapaz de fazer isso.
E saí, finalmente, dessa tua casa, que nunca será um lar para ninguém, nem sequer para ti, que não necessitas de paredes nem telhados, não precisas de comida, nem calor, apenas precisas dele.
E sabendo que não me vais procurar, olho uma última vez, de relance, para ti, sentado no piano, em frente á janela, a fazer amor com ele, oiço uma última vez o doce som da traição, os gemidos, nota a nota, grave, aguda, tanto em crescendo como em diminuendo, e penso como seria ser tocada assim, porque na verdade, comigo não fazias amor, comigo era apenas sexo, a tua paixão é só ele, e toda a gente o sabe, toda a gente te conhece como aquele que toca piano como quem faz amor.
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